segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

NUNCA NO PAIS SE DISCUTIU COMUNICAÇÃO COMO AGORA

Nunca antes neste país, cerca de 30 mil pessoas discutiram, ao longo de três
meses, o tema Comunicações ou Mídia. Nunca antes neste país, cerca de
mil pessoas ligadas a movimentos sociais, entidades sindicais e,
inclusive, associações empresariais debateram, junto com o governo,
políticas públicas para as Comunicações. Tema até hoje restrito aos
grupos empresariais interessados, aos profissionais do ramo ou a
círculos acadêmicos especializados, os problemas, as grandes questões,
os rumos das Comunicações brasileiras começam a ser apropriados,
compreendidos e questionados por amplos segmentos da nossa sociedade.
Se não houvesse nenhum outro saldo, somente este, a democratização do
debate, já traduziria o grande resultado positivo da Iª Conferência
Nacional de Comunicação (Iª Confecom), cuja etapa final foi realizada
em Brasília entre os dias 14 a 17 de dezembro passado.

Apesar de boicotada pela Rede Globo, à frente da Abert, e pelo
cartel dos grandes jornais, nucleados na ANJ, a Iª Confecom foi um
sucesso. Enfrentou não poucos problemas ao longo da sua construção,
esteve a pique de naufragar em alguns momentos mais acirrados, nas suas
Plenárias finais, mas ao cabo resultou numa estrondosa, até
emocionante, vitória do governo, das entidades da sociedade e de
milhares de pessoas que se empenharam na sua realização. A Confecom foi
um sucesso não somente pela mobilização que promoveu, mas também por
ter demonstrado a empresários e não-empresários ser possível sustentar
posições divergentes sem mútuas agressões e ser possível construir
posições convergentes com mútuas concessões. Com certeza, para a
Associação Brasileira de Radiodifusão (Abra) e para a Telebrasil,
entidades empresariais que não acompanharam o radicalismo da
Globo/Abert e da Folha/ANJ, a Confecom resultou num positivo
aprendizado democrático.
Ao contrário de tantas outras conferências convocadas e organizadas
pelo Governo Lula, esta se caracterizava pela necessidade de se
assegurar a presença do empresariado no debate. Para esvaziá-la, a
Abert, a ANJ e seus satélites caíram fora. Mas as contradições no campo
empresarial falaram mais alto, o governo soube negociar com elas, daí
que a Abra e a Telebrasil, depois de obterem salvaguardas que julgavam
necessárias, aceitaram seguir participando do processo e, assim,
qualificaram-se e se legitimaram para ocupar posições cada vez mais
politicamente influentes nos debates que se seguirão.
Essas salvaguardas foram muito criticadas pelas representações e
porta-vozes do campo popular, inclusive pelo autor dessas linhas. No
entanto, ao contrário do que podiam esperar até quem as acatou temendo
que, sem elas, a Confecom não se realizasse, as salvaguardas acabaram
ajudando a filtrar as questões realmente relevantes para o debate, e
não impediram que centenas de outras propostas fossem aprovadas por
consenso ou votação amplamente majoritária, apoiadas inclusive pela
representação empresarial.
Das quase 1.400 teses levadas a Brasília, metade delas foi
liminarmente rejeitada ainda nos grupos de trabalho. Para tanto,
bastava não somarem mais de 30% de votos favoráveis em seus grupos.
Parece que o bom senso prevaleceu nos GTs... Aquelas que somassem mais
de 80%, iriam direto para o relatório final como “aprovadas por
consenso” ou “por mais de 80%”: foram 601, número bastante elevado e
politicamente muito significativo. Nas demais, cada um dos dois
segmentos da sociedade civil, em cada GT, selecionaria quatro de maior
interesse para remeter às Plenárias finais, podendo o governo
selecionar duas. Assim, 140 propostas chegaram às Plenárias para serem
votadas ou, eventualmente, sujeitarem-se ao mecanismo da “questão
sensível” – se algum segmento levantasse “questão sensível”, a proposta
somente poderia ser aprovada se somasse 60% mais 1 dos votos e, pelo
menos, 1 voto em cada um dos três segmentos. Ainda assim, 71 propostas
foram aprovadas. Apenas 13 não lograram aprovação devido ao mecanismo..
Outras duas foram rejeitadas por maioria simples e as demais não foram
apreciadas por falta de tempo.
Ficou claro que poucas, embora decisivas questões opõem o
empresariado ao campo democrático, ou o capital ao trabalho, como se
diria em outros tempos... Um ponto de muito polêmica e que ainda deverá
ser melhor discutido trata do uso dos recursos do Fust para financiar a
universalização da banda larga. O empresariado quer, mas a CUT não quer
que esses recursos possam ser devolvidos às operadoras privadas que
prestariam o serviço. Para a CUT, essa operadora deveria ser uma
revitalizada Telebrás estatal. Outro ponto sobre o qual não foi
possível acordo trata da multiplexação dos canais de TV aberta digital.
A Abra gostaria de usar essa possibilidade tecnológica para permitir,
na prática, que cada emissora ofereça mais três, quatro ou cinco canais
de programação em um mesmo canal de concessão. O Coletivo Intervozes
orientou o campo democrático-popular a não concordar com isso: para
cada concessão, só um canal.

Sem força legal, as resoluções da Confecom poderão e deverão vir a
ser transformadas em projetos de lei do Executivo ou do Legislativo,
nos próximos anos. Ao contrário da legislação atualmente em vigor,
gerada em gabinetes fechados de governos anteriores e aprovada a força
de lobbies empresariais e de sabidos (mas nunca investigados) mensalões
passados, uma nova legislação que venha a ser respaldada nas resoluções
desta primeira e das próximas Confecons, estará politicamente
respaldada e legitimada pelo debate aberto e franco envolvendo os
diversos e diferentes segmentos da sociedade. Nos termos das resoluções
desta primeira Confecom, o Executivo ou o Legislativo já poderiam
considerar a possibilidade de debater uma ou mais de uma lei envolvendo
os aspectos abaixo relacionados.

- Criação do Conselho Nacional de Comunicação Social. Comemorado
como uma das principais conquistas das forças populares, trata-se de
antigo projeto, proposto inicialmente na Constituinte de 1988, cujas
origens remontam ao Conselho Nacional de Comunicações, instituído pelo
Código de Comunicações de 1962 e extinto pela ditadura militar. Nas
condições políticas atuais, o Conselho seria composto por
representantes do governo, do empresariado e da sociedade civil
não-empresarial, tendo poderes para formular e implementar políticas de
comunicações. Também foram aprovadas propostas prevendo a criação de
conselhos estaduais e municipais.

- Criação do Conselho Federal de Jornalismo e elaboração de uma nova
Lei de Imprensa. Independentemente da obrigatoriedade ou não do diploma
específico para exercício da profissão, a atividade em si necessita de
regulamentação, seja para assegurar, à sociedade, o livre acesso à
informação (o recente boicote, pelo “Jornal Nacional”, à notícia da
premiação do presidente Lula como Homem do Ano pelo Le Monde, é um
autêntico escândalo!), seja para garantir aos profissionais condições
reais para cumprirem, ou serem punidos se não cumprirem, o “código de
ética” do jornalismo. Uma das teses aprovadas prevê incluir numa futura
lei, a “cláusula de consciência” pela qual o profissional não poderia
sofrer intimidações por escrever contra os interesses do seu patrão.

- Proibição de publicidade dirigida a menores de 12 anos.
Sublinhando, por testemunho do autor destas linhas, que tal resultou de
um acordo aceito pela Telebrasil e pela Abra, a Confecom deu importante
respaldo à crescente mobilização da sociedade brasileira para proteger
a nossa infância e nossa juventude da influência de mensagens
publicitárias que visam formá-las como consumidores compulsivos, antes
que se formem como cidadãos. Se uma lei nessa direção vier a ser
aprovada, pode-se esperar algumas mudanças, para melhor, nas
mentalidades de futuras gerações.

- Incentivo à produção audiovisual nacional, independente, regional
ou comunitária. Foram dezenas as propostas aprovadas, por consenso, a
favor de políticas de fomento e incentivo, inclusive com introdução de
cotas ou criação de fundos, à produção nacional, ou independente, ou
regional, ou comunitária, ou educativa etc. Uma delas, diz com todas as
letras: “Garantir um mínimo de 50% do mercado nacional de radiodifusão
e TV por assinatura para a produção de conteúdo nacional” (GT 4/PL
516). O Congresso Nacional está portanto autorizado a introduzir cota
de 50% para produção nacional na programação dos canais estrangeiros em
TV por assinatura, no lugar das atuais ridículas 3hs30m semanais,
conforme consta em projeto de lei recentemente aprovado na Câmara
(PL-29), agora a caminho do Senado.

- Universalização da banda larga e da internet. Diversas propostas
aprovadas por consenso nos grupos de trabalho, confirmam a importância,
mesmo prioridade, que a sociedade brasileira passou a dar a políticas
públicas voltadas para a universalização da banda larga e do acesso à
internet. No entanto, como operacionalizá-las ainda é motivo de forte
dissenso, opondo as operadoras privadas às representações dos
trabalhadores e dos movimentos sociais. Sabendo-se que por aqui
avançarão as fronteiras capitalistas de acumulação nos próximos anos,
entende-se a maior dificuldade, neste ponto, de um acordo.

- Obediência à Constituição, em especial aos seus artigos 221 e 222.

A Confecom concordou que os meios de comunicação, independentemente das
plataformas tecnológicas, devem todos obedecerem aos princípios
constitucionais que estabelecem suas finalidades educativas e culturais
(cabendo, pois, regulamentá-los), bem como limitam a participação de
capital estrangeiro nesses serviços. Uma das propostas aprovadas
estabelece que o capital estrangeiro deverá ser reduzido de 30 para 10
por cento. Se depender da Confecom, a própria Constituição deveria ser
revista para eliminar a distinção que hoje faz entre radiodifusão e
telecomunicações, deixando assim as operadoras de telecomunicações
livres para prover conteúdos sem obediência aos princípios que regem
apenas (por enquanto) as emissoras de radiodifusão.

- Desenvolvimento tecnológico e industrial. Sem muito alarde, foram
aprovadas por consenso duas teses, no GT específico, reivindicando
políticas de fomento ao desenvolvimento industrial e tecnológico,
inclusive aproveitando as novas oportunidades de mercado a serem
abertas pela provável expansão da infra-estrutura de banda-larga, nos
próximos anos.

- Garantia de direitos. Sem maiores polêmicas, foram aprovadas quase
todas as teses que reivindicavam respeito aos, ou promoção dos direitos
de minorias, mulheres, trabalhadores e cidadãos e cidadãs em geral.

- Rádios e TVs comunitárias. Este segmento, nucleado pela Abraço e
pela ABCCom, foi um dos que mais se mobilizou pela realização da
Confecom. Foi brindado, ao final, com a aprovação de quase todas as
suas teses de fomento à radiodifusão comunitária e de condenação à
criminalização, em curso inclusive sob o governo Lula, de ativistas do
movimento.

A Confecom proporcionou-nos a todos e todas um grande aprendizado de
democracia e diálogo. Criou pontes de comunicação entre segmentos que
antes mal se cumprimentavam. Identificou atores e lideranças que
poderão, a partir de agora, aprendidas de parte a parte as lições,
tentar construir um novo, democrático e nacional marco regulatório para
as comunicações brasileiras. Por outro lado, não poderemos ignorar, nos
encaminhamentos futuros, as posturas atrasadas e atrabiliárias da
Globo, da Folha de S. Paulo, Estadão e similares, ainda recusando o
diálogo e a negociação, isto é, ainda ignorando as novas configurações
democráticas que vai assumindo a sociedade brasileira. Resta esperar
que, apesar dos seus indefectíveis editoriais de ocasião, nos seus
interiores já se esteja sabendo avaliar o real significado desta e de
outras tantas derrotas recentes. Ou ainda apostam que reverterão todo
esse processo em outubro próximo?

*Marcos Dantas é professor da Escola de Comunicação da UFRJ,
doutor em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ, ex-secretário de
Educação a Distância do MEC.

Nenhum comentário:

Postar um comentário